Em O Retrato, segunda parte da trilogia O tempo
e o vento, temos a
continuidade da saga da família Terra Cambará, sempre envolvida com a luta
política no Rio Grande do Sul, ora palco sangrento de guerras civis, ora tendo
ativa participação nas guerras do Prata. O pano de fundo central desta parte
são os anos finais do século XIX e as duas primeiras décadas do século xx, do
governo do paulista Campos Sales à presidência do mineiro Venceslau Brás.
A presença de um paulista e de um mineiro não foi acidental, mas produto do
domínio exercido pelos dois estados na cena política nacional: era a chamada
“política café com leite”. A República já tinha se consolidado — não se falava ou especulava sobre uma possível restauração monárquica. Agora, no horizonte político estavam presentes as divergências sobre a forma de gerir a coisa pública e o espaço reservado à oposição. Rodrigo Terra Cambará é um republicano insatisfeito, um desiludido do novo regime. Porém, não tem clareza sobre a forma de agir politicamente em defesa de seus princípios liberais. Simpatiza com algumas figuras dominantes — como é o caso do senador Pinheiro Machado, o condestável da República —, mas não consegue dissociá-las do grupo que domina o Rio Grande do Sul desde 1889, os castilhistas. Depois da morte de seu líder, Júlio de Castilhos, em 1903, Borges de Medeiros assumiu o governo e o manteve até 1928, eliminando qualquer espaço para manifestação da oposição por via legal, sempre lançando mão da Constituição gaúcha de 1891, eivada de positivismo do começo ao fim. As eleições, como vemos em O Retrato, eram uma farsa, não havia voto secreto e os eleitores eram coagidos a sufragar sempre o candidato da situação. Quando isso não ocorria, a urna da seção eleitoral era considerada nula e a manifestação do eleitorado, solenemente ignorada. Dessa forma, os caudilhos locais se perpetuaram no poder e não deram à oposição outro
espaço de manifestação a não ser a revolta aberta, armada, a rebelião, como
a ocorrida entre 1893 e 1895, na chamada Revolução Federalista, brevemente
mencionada por alguns personagens do romance. Santa Fé é um microcosmo do Rio Grande. Titi Trindade é a versão local de Borges de Medeiros: despoticamente inibe as manifestações de seus Opositores e mantém com mão de ferro seu poder, espalhando terror por onde passa. O funcionalismo municipal, o jornal local e a polícia são instrumentos usados pelo tiranete para se perpetuar no poder. Nem as famílias economicamente poderosas do lugar, como os Terra Cambará, escapam de seu arbítrio. Mesmo estes, quando se posicionam, por qualquer
motivo, contra seus caprichos, também sofrem perseguições. Não há
adversários políticos mas inimigos, e com inimigos não se convive; eliminamse.
Em meio à violência e ao despotismo político estão os imigrantes italianos
e alemães. Muitos deles vivem isolados em colônias, distantes da sede do
município, onde mantêm seus costumes (língua, festas e hábitos), mas
também são vítimas do coronelismo, obrigados a obedecer ao que é imposto
por Trindade, especialmente no momento das eleições — caso contrário,
também seriam perseguidos, sem ter a quem recorrer. No desenho das classes sociais, temos os pequeno-burgueses de Santa Fé, que necessitam para sobreviver da proteção de algum potentado local — e terão de servi-lo docilmente —, sem nenhuma perspectiva de autonomia econômica ou política. Já os pobres e miseráveis não fazem parte da
sociedade, não são considerados cidadãos: vivem em bairros imundos —
desprovidos de quaisquer benefícios —, nas eleições são obrigados a votar
nos candidatos do coronel e são úteis somente para serem explorados e
terem suas filhas defloradas pelos filhos dos latifundiários. Um corpo estranho
— porque não constituem habitantes permanentes da cidade — são os oficiais
militares, provenientes de diversos estados do Brasil. Não podiam se envolver
na política local, mas acabam participando dos embates no campo das ideias.
Ou defendem a ditadura positivista, tal qual o coronel Jairo — e a referência é
Augusto Comte —, ou a ditadura militar — tendo raízes no pensamento de
extrema direita da França e da Alemanha —, como o capitão Rubim. Esses
oficiais divergem, polemizam com ardor não sobre as vantagens da
democracia, mas sobre qual tipo de ditadura seria mais adequada ao Brasil.
Santa Fé, como qualquer cidade gaúcha da época, é uma sociedade
machista. Às mulheres, desde o nascimento, está reservado um lugar preciso
na comunidade: devem obrigatoriamente se casar, parir filhos, cuidar dos
afazeres domésticos e obedecer a seus maridos. Não há nenhum espaço de
independência para elas: devem ser uma pálida sombra de seus maridos e
viver em função deles. O Retrato tem como personagem principal Rodrigo Terra Cambará, um reformador, que deseja ardentemente modernizar Santa Fé, sempre da
perspectiva da classe dominante: as propostas são suas, não foram produto
de uma consulta à comunidade ou de alguma forma de diálogo mesmo que
com seus amigos. Sua visão de mundo encontra campo fértil quando da vitória
dos gaúchos na Revolução de 1930 e da ascensão de Getulio Vargas à
presidência da República — o que, como informa o autor no início e no final do
volume, acaba levando Rodrigo para a capital federal, o Rio de Janeiro, onde,
simbolicamente, amarra seus cavalos no obelisco da avenida Rio Branco.
Erico Verissimo contrapôs a vida na cidade — centrada na residência da
família Cambará, o Sobrado — ao Angico, a estância da família. Licurgo, o
pai, e Toríbio, o irmão, são felizes quando permanecem no campo, onde
mantêm o modo tradicional de vida gaúcho. Rodrigo, não. Sempre foi o
homem da modernidade, da grande cidade, que estava sintonizado com a
última moda europeia no vestir e no comer. Mas não só: defendia
enfaticamente a instalação da energia elétrica na cidade, símbolo de
continuidade da saga da família Terra Cambará, sempre envolvida com a luta
política no Rio Grande do Sul, ora palco sangrento de guerras civis, ora tendo
ativa participação nas guerras do Prata. O pano de fundo central desta parte
são os anos finais do século XIX e as duas primeiras décadas do século xx, do
governo do paulista Campos Sales à presidência do mineiro Venceslau Brás.
A presença de um paulista e de um mineiro não foi acidental, mas produto do
domínio exercido pelos dois estados na cena política nacional: era a chamada
“política café com leite”. A República já tinha se consolidado — não se falava ou especulava sobre uma possível restauração monárquica. Agora, no horizonte político estavam presentes as divergências sobre a forma de gerir a coisa pública e o espaço reservado à oposição. Rodrigo Terra Cambará é um republicano insatisfeito, um desiludido do novo regime. Porém, não tem clareza sobre a forma de agir politicamente em defesa de seus princípios liberais. Simpatiza com algumas figuras dominantes — como é o caso do senador Pinheiro Machado, o condestável da República —, mas não consegue dissociá-las do grupo que domina o Rio Grande do Sul desde 1889, os castilhistas. Depois da morte de seu líder, Júlio de Castilhos, em 1903, Borges de Medeiros assumiu o governo e o manteve até 1928, eliminando qualquer espaço para manifestação da oposição por via legal, sempre lançando mão da Constituição gaúcha de 1891, eivada de positivismo do começo ao fim. As eleições, como vemos em O Retrato, eram uma farsa, não havia voto secreto e os eleitores eram coagidos a sufragar sempre o candidato da situação. Quando isso não ocorria, a urna da seção eleitoral era considerada nula e a manifestação do eleitorado, solenemente ignorada. Dessa forma, os caudilhos locais se perpetuaram no poder e não deram à oposição outro
espaço de manifestação a não ser a revolta aberta, armada, a rebelião, como
a ocorrida entre 1893 e 1895, na chamada Revolução Federalista, brevemente
mencionada por alguns personagens do romance. Santa Fé é um microcosmo do Rio Grande. Titi Trindade é a versão local de Borges de Medeiros: despoticamente inibe as manifestações de seus Opositores e mantém com mão de ferro seu poder, espalhando terror por onde passa. O funcionalismo municipal, o jornal local e a polícia são instrumentos usados pelo tiranete para se perpetuar no poder. Nem as famílias economicamente poderosas do lugar, como os Terra Cambará, escapam de seu arbítrio. Mesmo estes, quando se posicionam, por qualquer
motivo, contra seus caprichos, também sofrem perseguições. Não há
adversários políticos mas inimigos, e com inimigos não se convive; eliminamse.
Em meio à violência e ao despotismo político estão os imigrantes italianos
e alemães. Muitos deles vivem isolados em colônias, distantes da sede do
município, onde mantêm seus costumes (língua, festas e hábitos), mas
também são vítimas do coronelismo, obrigados a obedecer ao que é imposto
por Trindade, especialmente no momento das eleições — caso contrário,
também seriam perseguidos, sem ter a quem recorrer. No desenho das classes sociais, temos os pequeno-burgueses de Santa Fé, que necessitam para sobreviver da proteção de algum potentado local — e terão de servi-lo docilmente —, sem nenhuma perspectiva de autonomia econômica ou política. Já os pobres e miseráveis não fazem parte da
sociedade, não são considerados cidadãos: vivem em bairros imundos —
desprovidos de quaisquer benefícios —, nas eleições são obrigados a votar
nos candidatos do coronel e são úteis somente para serem explorados e
terem suas filhas defloradas pelos filhos dos latifundiários. Um corpo estranho
— porque não constituem habitantes permanentes da cidade — são os oficiais
militares, provenientes de diversos estados do Brasil. Não podiam se envolver
na política local, mas acabam participando dos embates no campo das ideias.
Ou defendem a ditadura positivista, tal qual o coronel Jairo — e a referência é
Augusto Comte —, ou a ditadura militar — tendo raízes no pensamento de
extrema direita da França e da Alemanha —, como o capitão Rubim. Esses
oficiais divergem, polemizam com ardor não sobre as vantagens da
democracia, mas sobre qual tipo de ditadura seria mais adequada ao Brasil.
Santa Fé, como qualquer cidade gaúcha da época, é uma sociedade
machista. Às mulheres, desde o nascimento, está reservado um lugar preciso
na comunidade: devem obrigatoriamente se casar, parir filhos, cuidar dos
afazeres domésticos e obedecer a seus maridos. Não há nenhum espaço de
independência para elas: devem ser uma pálida sombra de seus maridos e
viver em função deles. O Retrato tem como personagem principal Rodrigo Terra Cambará, um reformador, que deseja ardentemente modernizar Santa Fé, sempre da
perspectiva da classe dominante: as propostas são suas, não foram produto
de uma consulta à comunidade ou de alguma forma de diálogo mesmo que
com seus amigos. Sua visão de mundo encontra campo fértil quando da vitória
dos gaúchos na Revolução de 1930 e da ascensão de Getulio Vargas à
presidência da República — o que, como informa o autor no início e no final do
volume, acaba levando Rodrigo para a capital federal, o Rio de Janeiro, onde,
simbolicamente, amarra seus cavalos no obelisco da avenida Rio Branco.
Erico Verissimo contrapôs a vida na cidade — centrada na residência da
família Cambará, o Sobrado — ao Angico, a estância da família. Licurgo, o
pai, e Toríbio, o irmão, são felizes quando permanecem no campo, onde
mantêm o modo tradicional de vida gaúcho. Rodrigo, não. Sempre foi o
homem da modernidade, da grande cidade, que estava sintonizado com a
última moda europeia no vestir e no comer. Mas não só: defendia
enfaticamente a instalação da energia elétrica na cidade, símbolo de
progresso no início do século XX..
Licurgo e Toríbio voltaram para o Angico, e Rodrigo ficou com a madrinha no
Sobrado, o que lhe deu uma gostosa sensação de liberdade. Queria bem ao
pai, respeitava-o, e era-lhe intimamente necessária a ideia de que ele o
estimava e admirava. No entanto, quando o velho estava perto, não podia
deixar de sentir uma impressão de malestar, por ver um implacável olho
fiscalizador permanentemente focado em sua pessoa. Não havia criatura mais
crítica de seus atos que Maria Valéria, mas Rodrigo tinha para com ela a
liberdade de replicar. Além do mais, as repreensões da tia geralmente faziamno
rir. Com Licurgo, porém, era diferente. Havia pouco, ao receber algumas
caixas de vinhos franceses e italianos encomendadas a uma firma de Porto
Alegre, Rodrigo transformara um dos compartimentos do porão numa adega.
Levara o pai a vê-la, mas o único comentário que arrancara dele fora uma
série de pigarros de contrariedade. Soube depois que o Velho dissera à
cunhada: “Esse rapaz é um perdulário. Não sei por quem puxou”.
Doutra feita, durante o almoço, Rodrigo abrira uma garrafa de Borgonha.
Ao fazer menção de encher o cálice do pai, este o detivera.
— Pra mim, não.
No dia seguinte, vendo o filho abrir uma garrafa de Chianti, franzira o
cenho.
— O senhor pretende tomar vinho todos os dias?...
Sobrado, o que lhe deu uma gostosa sensação de liberdade. Queria bem ao
pai, respeitava-o, e era-lhe intimamente necessária a ideia de que ele o
estimava e admirava. No entanto, quando o velho estava perto, não podia
deixar de sentir uma impressão de malestar, por ver um implacável olho
fiscalizador permanentemente focado em sua pessoa. Não havia criatura mais
crítica de seus atos que Maria Valéria, mas Rodrigo tinha para com ela a
liberdade de replicar. Além do mais, as repreensões da tia geralmente faziamno
rir. Com Licurgo, porém, era diferente. Havia pouco, ao receber algumas
caixas de vinhos franceses e italianos encomendadas a uma firma de Porto
Alegre, Rodrigo transformara um dos compartimentos do porão numa adega.
Levara o pai a vê-la, mas o único comentário que arrancara dele fora uma
série de pigarros de contrariedade. Soube depois que o Velho dissera à
cunhada: “Esse rapaz é um perdulário. Não sei por quem puxou”.
Doutra feita, durante o almoço, Rodrigo abrira uma garrafa de Borgonha.
Ao fazer menção de encher o cálice do pai, este o detivera.
— Pra mim, não.
No dia seguinte, vendo o filho abrir uma garrafa de Chianti, franzira o
cenho.
— O senhor pretende tomar vinho todos os dias?...
BIBLIOTECA 2 PASTA (E)
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