... onde estou?... alcova-túmulo escuro sem ar... o sapo-boi latejando entre as
pernas... fole viscoso esguichando um líquido negro... pregado à cama mortuária... o
sangue se esvaindo pelos poros do animal... incha e desincha... incha e desincha... a
coisa lhe sobe sufocante no peito. a menininha com saiote de bailarina flor vermelha
no sexo manipula o brinquedo de mola... ele quer gritar que não!... mas a voz não
sai... o sapofole atravessado na garganta... a menininha acaricia o monstro... não sabe
que ele esguicha veneno... minha filha vá buscar socorro... que venham acalmar o
animal... mas cuidado não me machuquem o peito... a menininha não sabe... aperta
com os dedos o brinquedo proibido... não vê que assim vai matar o Sumo
Pontífice?... o remédio é cuspir fora o sapo... tossir fora o bicho-fole-músculo...
tossir fora...
Poucos minutos depois das duas da madrugada, Rodrigo Cambará desperta de
repente, soergue-se na cama, arquejante", e através da névoa e do confuso horror do
pesadelo, sente na penumbra do quarto uma presença inimiga... Quem é? - exclama
mentalmente, pensando em pegar o revólver, que está na gaveta da mesinha-decabeceira.
Quem é? Silêncio e sombra. Uma cócega aflitiva na garganta provoca-lhe
um acesso de tosse curta e espasmódica... E ele toma então consciência do peso no
peito, da falta de ar... Ergue a mão para desabotoar o casaco do pijama e leva alguns
segundos para perceber que está de torso nu. Um suor viscoso e frio umedece-lhe a
pele. Vem-lhe de súbito o vapor de um novo ataque... Espalma ambas as mãos sobre
o peito e, agora sentado na cama, 7 meio encurvado, fica imóvel esperando a dor da
angina. Santo Deus! Decerto é o fim... Em cima da mesinha, a ampola de nitrito... Na
gaveta, o revólver... Quebrar a ampola e levá-la às narinas... Encostar o cano da arma
ao ouvido, puxar o gatilho, estourar os miolos, terminar a agonia... Talvez uma
morte rápida seja preferível à dor brutal que mais de uma vez lhe lancetou o peito...
Mas ele quer viver... Viver! Se ao menos pudesse cessar de tossir, ficar imóvel como
uma estátua... Sente o surdo pulsar do coração, a respiração estertorosa... Mas a dor
lancinante não vem, louvado seja Deus! Só continua a opressão no peito, esta
dificuldade no respirar..
Maria Valéria costumava ler os jornais todos os dias, com os óculos
acavalados no longo nariz. Flora gostava de observá-la nessas ocasiões. A
velha não podia ler sem mover os lábios. De vez em quando fazia um
comentário em voz alta — hum! —, encolhia os ombros — mentira! — ou
sacudia a cabeça — boa bisca! — e assim por diante...
Naquela tarde de maio a Dinda lia o Correio do Povo, sentada na sua
cadeira de balanço, enquanto Flora bordava a seu lado. As crianças
brincavam no vestíbulo, numa grande algazarra.
— Vão pro quintal! — gritou a velha. — Não posso ler com esse barulho.
Flora ergueu-se para fazer que os filhos cumprissem a ordem. Ao passar
pela sala de visitas, surpreendeu Sílvia sentada na frente do retrato de
Rodrigo, as mãos pousadas no regaço, uma névoa triste nos olhos. Quando
deu pela presença da madrinha, ficou perturbada, como se a tivessem pilhado
a roubar doces na despensa. Flora compreendeu tudo e comoveu-se.
— Minha querida! — exclamou. — Que é que estás fazendo aqui sozinha?
Vai lá pra cima brincar com a Alicinha.
Quando voltou para a sala de jantar, minutos mais tarde, Maria Valéria
lançou-lhe um olhar por cima dos óculos e perguntou:
— Que bicho será este?
— Que bicho?
A velha tornou a baixar o olhar para o jornal e leu:
— Habeas corpus. Todo o mundo está pedindo esse negócio.
— Ah! Deve ser coisa de advogado. O Rodrigo uma vez me explicou.
Parece que é para tirar uma pessoa da cadeia.
— Hum...
Muitos assisistas tinham sido presos em Porto Alegre e outras localidades
do estado: jornalistas, políticos e gente do povo. A coisa ficava cada vez mais
preta.
A Dinda ergueu-se, brusca, amassou com raiva o jornal e atirou-o em cima
duma cadeira, como se aquelas folhas de papel fossem as principais
responsáveis pela situação em que se encontrava o Rio Grande e o resto do
mundo. Aproximou-se da janela e olhou para fora.
— Chii! — exclamou. — Estamos bem arranjadas...
— Que foi que houve?...
acavalados no longo nariz. Flora gostava de observá-la nessas ocasiões. A
velha não podia ler sem mover os lábios. De vez em quando fazia um
comentário em voz alta — hum! —, encolhia os ombros — mentira! — ou
sacudia a cabeça — boa bisca! — e assim por diante...
Naquela tarde de maio a Dinda lia o Correio do Povo, sentada na sua
cadeira de balanço, enquanto Flora bordava a seu lado. As crianças
brincavam no vestíbulo, numa grande algazarra.
— Vão pro quintal! — gritou a velha. — Não posso ler com esse barulho.
Flora ergueu-se para fazer que os filhos cumprissem a ordem. Ao passar
pela sala de visitas, surpreendeu Sílvia sentada na frente do retrato de
Rodrigo, as mãos pousadas no regaço, uma névoa triste nos olhos. Quando
deu pela presença da madrinha, ficou perturbada, como se a tivessem pilhado
a roubar doces na despensa. Flora compreendeu tudo e comoveu-se.
— Minha querida! — exclamou. — Que é que estás fazendo aqui sozinha?
Vai lá pra cima brincar com a Alicinha.
Quando voltou para a sala de jantar, minutos mais tarde, Maria Valéria
lançou-lhe um olhar por cima dos óculos e perguntou:
— Que bicho será este?
— Que bicho?
A velha tornou a baixar o olhar para o jornal e leu:
— Habeas corpus. Todo o mundo está pedindo esse negócio.
— Ah! Deve ser coisa de advogado. O Rodrigo uma vez me explicou.
Parece que é para tirar uma pessoa da cadeia.
— Hum...
Muitos assisistas tinham sido presos em Porto Alegre e outras localidades
do estado: jornalistas, políticos e gente do povo. A coisa ficava cada vez mais
preta.
A Dinda ergueu-se, brusca, amassou com raiva o jornal e atirou-o em cima
duma cadeira, como se aquelas folhas de papel fossem as principais
responsáveis pela situação em que se encontrava o Rio Grande e o resto do
mundo. Aproximou-se da janela e olhou para fora.
— Chii! — exclamou. — Estamos bem arranjadas...
— Que foi que houve?...
Naquele sábado de fins de julho de 1930, Rodrigo reuniu alguns amigos no
Sobrado para comemorar o aniversário de Flora. Chegaram primeiro os
Macedos: d. Veridiana, gorducha e matronal, o rosto redondo, a pele de
requeijão, anéis faiscantes nos dedos, toda metida no seu rico casacão de
peles, e envolta numa atmosfera de L’Origan de Coty e naftalina; Juquinha,
sempre jovial, com sua invejável cabeleira negra e espessa, enfarpelado numa
roupa escura feita antes da Revolução de 23, e que já agora começava a
ficar-lhe apertada nos lugares mais inconvenientes. O dr. Dante Camerino veio
com a mulher na esteira dos sogros: ele já com sua barriguinha próspera, pois
tinha boa clínica, fazia dinheiro, começava a ensaiar-se em aventuras
pecuárias; ela cada vez mais parecida com a mãe, de quem ganhara no último
Natal o casacão de peles que ostentava agora. (Desse casal dissera Rodrigo
com terna ironia: “Entendem-se bem: engordam de comum acordo”.)
Contra a expectativa do dono da casa, que convidara os vizinhos
americanos por pura cortesia, compareceram também à festa o rev. Dobson e
sra. D. Dorothy, alvoroçada, soltando suas risadinhas nervosas, procurando
ser amável com todos: o pastor sem saber onde colocar as manoplas
incendiadas de pelos ruivos ou acomodar as pernas de joão-grande: ambos
com um ar vago, transparente e indeciso, como fantasmas sem experiência
que estivessem assombrando uma casa pela primeira vez.
Pouco depois entraram os Prates. O dr. Terêncio, que agora, morto o pai,
era o chefe de seu clã, entregou à criada no vestíbulo o sobretudo preto
trespassado, feito por um dos melhores alfaiates de Paris, tirou as luvas de
pele de cão e jogou-as dentro do seu chapéu Gelot que a rapariga segurava;
e, depois de ajustar o nó da gravata num gesto automático, tomou do braço
da mulher e dirigiu-a para a sala de visitas, com a gravidade de quem carrega
um andor. Marília Prates tinha mesmo algo de madona, uma beleza meio seca
e morta de imagem de pau pintado. Trazia um vestido de seda negro,
simplicíssimo, recendia a Nuit de Noël e como única joia estadeava no peito, à
maneira de broche, uma comenda da Ordem da Rosa que o Imperador
conferira a seu bisavô, general das tropas legalistas que em 35 combateram
os Farrapos. Raramente sorria, tinha orgulho de sua árvore genealógica,
gostava de livros, sabia o seu francês, passara com o marido alguns anos em
Paris e — afirmavam as comadres maliciosas — não dava duas palavras sem
dizer: “Uma vez nos Champs Elysées...”.
Sobrado para comemorar o aniversário de Flora. Chegaram primeiro os
Macedos: d. Veridiana, gorducha e matronal, o rosto redondo, a pele de
requeijão, anéis faiscantes nos dedos, toda metida no seu rico casacão de
peles, e envolta numa atmosfera de L’Origan de Coty e naftalina; Juquinha,
sempre jovial, com sua invejável cabeleira negra e espessa, enfarpelado numa
roupa escura feita antes da Revolução de 23, e que já agora começava a
ficar-lhe apertada nos lugares mais inconvenientes. O dr. Dante Camerino veio
com a mulher na esteira dos sogros: ele já com sua barriguinha próspera, pois
tinha boa clínica, fazia dinheiro, começava a ensaiar-se em aventuras
pecuárias; ela cada vez mais parecida com a mãe, de quem ganhara no último
Natal o casacão de peles que ostentava agora. (Desse casal dissera Rodrigo
com terna ironia: “Entendem-se bem: engordam de comum acordo”.)
Contra a expectativa do dono da casa, que convidara os vizinhos
americanos por pura cortesia, compareceram também à festa o rev. Dobson e
sra. D. Dorothy, alvoroçada, soltando suas risadinhas nervosas, procurando
ser amável com todos: o pastor sem saber onde colocar as manoplas
incendiadas de pelos ruivos ou acomodar as pernas de joão-grande: ambos
com um ar vago, transparente e indeciso, como fantasmas sem experiência
que estivessem assombrando uma casa pela primeira vez.
Pouco depois entraram os Prates. O dr. Terêncio, que agora, morto o pai,
era o chefe de seu clã, entregou à criada no vestíbulo o sobretudo preto
trespassado, feito por um dos melhores alfaiates de Paris, tirou as luvas de
pele de cão e jogou-as dentro do seu chapéu Gelot que a rapariga segurava;
e, depois de ajustar o nó da gravata num gesto automático, tomou do braço
da mulher e dirigiu-a para a sala de visitas, com a gravidade de quem carrega
um andor. Marília Prates tinha mesmo algo de madona, uma beleza meio seca
e morta de imagem de pau pintado. Trazia um vestido de seda negro,
simplicíssimo, recendia a Nuit de Noël e como única joia estadeava no peito, à
maneira de broche, uma comenda da Ordem da Rosa que o Imperador
conferira a seu bisavô, general das tropas legalistas que em 35 combateram
os Farrapos. Raramente sorria, tinha orgulho de sua árvore genealógica,
gostava de livros, sabia o seu francês, passara com o marido alguns anos em
Paris e — afirmavam as comadres maliciosas — não dava duas palavras sem
dizer: “Uma vez nos Champs Elysées...”.
BIBLIOTECA 2 PASTA (E)
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